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17/06/2009 / videcampos

Balaio da Vivi: uma prosa com o filósofo Sérgio Murilo Rodrigues (ENTREVISTA: 2ª parte)

 
 
 
Sérgio Murilo Rodrigues
Arquivo pessoal
Foto editada por Bia Menezes
 
 
 
 
 
 

“O ser feliz é aquele que saboreia a vida

em todos os seus momentos”

 

 

 

     Sérgio Murilo Rodrigues é professor de Filosofia na PUC/MG há 17 anos. Iniciou sua carreira em Belo Horizonte na FAFI-BH, atualmente UNI-BH, como professor de Filosofia da Educação para o curso de Pedagogia. Em 1997, dedicou-se à pesquisa sobre a questão da verdade, usando como marco referencial o filósofo alemão Jürgen Habermas, defendendo a dissertação de Mestrado em 1999. Em 2001, iniciou o doutorado na Universidad Complutense de Madrid investigando a questão da verdade moral. É coordenador do curso de Filosofia e do projeto “Convite ao Pensar” realizado aos sábados de manhã na PUC/MG. Este projeto do Deptº de Filosofia da PUC/MG existe desde 1995. Neste 1º semestre de 2009, o CONSUMISMO foi o tema das palestras.

     Sérgio Murilo participa de palestras, debates e encontros promovidos por organizações, associações e empresas privadas. O último encontro de que participou foi no Minas Tênis II em abril deste ano, onde falou de “Matrix e a alegoria da caverna”.

     Pai de Carmem e Guilherme, Sérgio Murilo reside em Belo Horizonte.

     sergio10@pucminas.br

 

 

(A 1ª parte da ENTREVISTA*  foi postada em 21/5/09)

 

 

 

     Michel Foucault tratou da relação entre o poder e o corpo. De acordo com seu pensamento, o valor do corpo implica a interpretação do sujeito, mas o ato de interpretar depende do olhar do outro. Assim, o olhar do outro diz para o sujeito algo sobre seu corpo. Ao dizer ao sujeito algo sobre seu corpo, o olhar do outro estabelece um lugar para o corpo do sujeito. E a partir da interpretação dada pelo olhar do outro, o sujeito interpreta seu próprio corpo. Podemos dizer que há uma dependência entre a interpretação que o sujeito faz do próprio corpo e o olhar do outro, configurando a relação entre poder e corpo. O sujeito que depende do olhar do outro para interpretar seu próprio corpo vincula-se ao outro numa posição de vulnerabilidade. Foucault chamou de “micropoderes” os mecanismos sutis de controle do corpo. Quais são os “micropoderes” hoje? Quais as dificuldades do homem contemporâneo em relação à interpretação do próprio corpo num momento em que o corpo é valorado como mercadoria?

 

      Primeiro Foucault estabelece um limite claro para a razão: ela não fala de coisas absolutas, mas de relações. Só posso falar do meu corpo em relação a outro corpo, por isso dependo do outro, por isso existe tanta força no olhar do corpo, pois o olhar do outro pode colocar o meu corpo em vários lugares e cada lugar desses vai estabelecer uma interpretação do corpo. E não adianta pensar em uma essência do seu corpo, pois, para Foucault, isso não existe. Segundo, para Foucault o poder não é algo que se tem, mas algo que se exerce. Não existe o poder, mas o exercício do poder. O Lula foi eleito presidente da República, então ele tem poder. Mentira, o Lula deve ter dado muitas ordens que não foram cumpridas, que se perderam nos gabinetes, na burocracia etc. O poder é um exercício constante, praticado todos os dias, caso contrário, ele deixa de existir. Quantos chefes não mandam nada? Terceiro, os “micropoderes” são os pequenos poderes reais e concretos que são exercidos sutilmente, mas constantemente, sobre nós. É o olhar do vizinho que te impede de fazer algo e, portanto exerce um poder sobre você. Atualmente, os “micropoderes” se fundam basicamente nas ciências. O discurso científico é o “olho” que nos vigia 24 horas por dia. Ele nos disciplina em nosso cotidiano: escovamos os dentes, tomamos banho, dormimos tantas horas, tomamos remédios, não nos masturbamos porque a ciência recomenda (manda) fazermos isso e não fazermos aquilo. Paramos de fumar, porque a ciência diz que faz mal. Não é preciso dizer que a ciência tem um cuidado especial com o corpo, principalmente com o corpo-mercadoria que precisa seguir um determinado padrão: aí temos os nutricionistas com suas dietas, os esteticistas com seus cosméticos, os cirurgiões plásticos com suas operações, os fisioterapeutas e os educadores físicos com seus exercícios e suas musculações, os médicos com seus remédios, os psicólogos e psiquiatras com suas normas de comportamento, sexólogos ensinando como fazer sexo e assim por diante: tudo por um corpo perfeito. (Você já reparou na disciplina que se impõem livremente modelos, artistas, rainhas da bateria e etc.)

   

 

     Na sociedade brasileira, com as dificuldades históricas em relação à democracia, sendo a cidadania ainda um desafio incipiente e muito distante da nossa realidade, pensadores observam que a racionalidade econômica teve um papel preponderante na formação de consumidores, e não de cidadãos. Por este ponto de vista, a nossa noção de cidadania estaria apartada do sentido de pertencimento a uma coletividade. A identificação do consumidor como “cidadão” se fundamentaria essencialmente na sua capacidade de consumo. O poder de consumo como aferição de “cidadania” classifica e distingue quem pode consumir mais em “mais cidadão”. Como você vê na nossa sociedade o deslocamento do cidadão enquanto promessa para o lugar de consumidor?

 

     Hannah Arendt no seu livro “As origens do Totalitarismo” (1951) já falava na transformação dos cidadãos em consumidores e colocava isso como uma das origens do nazismo, do fascismo e do stalinismo. Não é difícil perceber a diferença, basta entrarmos em uma loja e prestarmos atenção no nosso comportamento de consumidores: queremos as coisas prontas, exigimos ser bem atendidos e queremos ter prazer. Muito diferente da relação entre cidadãos, que precisam chegar a um acordo, que não está pronto, é preciso contrariar interesses, enfrentar conflitos, situações que não são prazerosas. Vejo isso claramente na relação entre professor e aluno que nos últimos anos tem sido insistentemente transformada em uma relação entre consumidor e fornecedor com resultados catastróficos para o processo pedagógico. Este papel de destaque dado ao consumidor é bem adequado a um sistema no qual predomina a racionalidade instrumental, que por sua vez privilegia a dimensão do econômico, acima de todas as outras. O cidadão-consumidor vai pensar em termos de seu interesse particular e só participará de ações coletivas se ele for beneficiado diretamente. No Brasil, como no resto do mundo, é esta situação que predomina atualmente, com o agravante de ainda não termos algumas instituições fundamentais para a cidadania devidamente consolidadas. Por exemplo, o Judiciário, é relativamente recente a implantação da obrigatoriedade de concurso para ingresso na carreira judiciária e mesmo assim, os juízes podem nomear um grande número de assessores sem a necessidade de concurso, podemos também acrescentar o despotismo de juízes que se julgam acima da lei, a composição política dos tribunais de justiça e superiores e outras coisas mais. Assim, o poder econômico-instrumental esmaga o cidadão, que não tem muito como reagir, para reagir ele precisaria ter dinheiro, ser um consumidor, mas, se assim fosse, ele estaria do lado do poder econômico exigindo prefeitos/governadores bons administradores e não políticos, no sentido de resolver os conflitos sociais. Podemos agora entender por que existe uma revolta e uma violência tão grande nas favelas; lá as pessoas estão totalmente abandonadas, são invisíveis.

 

 

        Sempre bom lembrar que herdamos traços de autoritarismo e passamos por períodos de regime de exceção. Mas estamos em outro momento político, sabemos do papel fundamental das instituições no processo de cidadania e estamos mais conscientes em relação à complexidade das nossas dificuldades. Há juízes em comarcas do interior lidando com situações absurdas; um juiz para 6.000 processos. Nos estados brasileiros, há defensores públicos que não têm espaço, lugar para atender o cidadão. São profissionais que se deparam com uma triste realidade e têm que dar “conta” dela. O acesso difícil à Justiça acaba dando margem a uma imagem negativa também do Poder Judiciário. Por outro lado, o espaço do debate pode estar vazio na nossa sociedade por falta de pessoas interessadas em ocupá-lo e participar, como ouvi esses dias: “no Brasil, não se milita mais porque todo mundo virou burguês!” E parece persistir no imaginário do brasileiro o mito do salvador da pátria. Membros do Ministério Público, por exemplo, criticam a postura passiva do brasileiro que não atua no processo democrático e espera da instituição a solução para todos os males da nossa cidadania. Quais    seriam     os    caminhos  para  aproximar  o  brasileiro das  questões de sua cidadania?

 

        Um dos primeiros livros de Habermas chama-se “Mudança estrutural na esfera pública”, no qual ele fala que desde o século XVIII, na Europa, já havia uma distinção clara entre a sociedade civil ou esfera privada e o Estado ou esfera pública e que no século XX estávamos assistindo à profissionalização da política, já que o burguês endinheirado não tinha tempo para defender seus interesses nas esferas públicas, ele passou a “pagar” para isso (lógico que não pagar diretamente). O que eu quero dizer com isso? Ora, no Brasil, a esfera pública começou a distinguir-se da esfera privada recentemente e quando digo recentemente estou falando de 1980 para cá. Na esquina da minha rua tem um borracheiro que utiliza o passeio e a rua para a sua atividade privada, bares ocupam o passeio com mesas e estacionamentos, terras do governo são apropriadas para finalidades particulares. Essa situação tem melhorado muito, mas é fato que o brasileiro ainda tem pouca noção do que seja cidadania, o que seja ter direitos e deveres e a discutir essas questões. O Judiciário como parte da estrutura do Estado não está imune a isso. A Constituição de 1988 preocupou-se muito em garantir direitos que foram abolidos na ditadura militar, mas não houve uma mudança de estrutura. Os poderes do Estado, Legislativo, Judiciário e Executivo, ainda são distantes do povo, em que pese todo o esforço do governo Lula para mudar essa situação. No seu livro “Facticidade e validade” (traduzido como “Direito e democracia”), Habermas fala de uma teoria procedimental do Direito, ou seja, a sociedade civil organizada discutindo como igual com o Judiciário acerca das leis. Ora, esta situação ainda está muito distante do Brasil. Não conseguimos nem acabar com o “juridiquês”, “língua” utilizada por advogados, promotores e juízes; as pessoas comuns não entendem o que está acontecendo com elas. Lembro que as “gírias” surgem quando grupos querem falar de forma que não sejam entendidos pelos outros. Quando um Ministro do Supremo Tribunal Federal, a maior instância judiciária do País, diz que ele não pode estar fora da lei, pois é ele quem decide o que é a lei, penso que isso em termos de comunicação livre e cidadania é péssimo. Quando insistimos em manter uma estrutura cartorial do tempo da colonização portuguesa, penso que a cidadania perde. Volto a dizer que estamos no caminho certo, a situação tem melhorado a olhos vistos, principalmente com o Direito do Consumidor, que passou a ser utilizado por uma imensa parte da população, e os Juizados de Pequenas Causas. Sei da situação caótica, mas sei que o Brasil tem a proporção de juízes recomendada pela ONU em relação a sua população. Qual é o problema? A distribuição de juízes pelo território nacional, as exigências de um processo judicial que obriga as partes a produzirem um número excessivo (e desnecessário) de documentos (muitos deles repetidos), a morosidade do rito processual e a falta de informatização desta esfera. Quando a gente fica sabendo que um processo para que uma moradora de um prédio retire o seu cachorro do seu apartamento chega ao Supremo Tribunal Federal vemos que tem algo errado. O maior problema é que as pessoas não assumem a sua cidadania e veem o Judiciário como algo externo que está contra elas (e muitas vezes é verdade). Mesmo em turmas minhas na Universidade vejo pessoas cultas falando que o Judiciário não serve para a população pobre. Eu sempre respondo que a única coisa que os pobres têm para se defender é o Judiciário, pois força por força, a classe rica tem muito mais. Hoje temos um número imenso de pessoas fazendo o curso de Direito, penso que isso a médio prazo será benéfico, pois teremos um número maior de pessoas discutindo os nossos direitos e o papel do Judiciário, com uma única intenção: melhorar o desempenho da Justiça.

 

 

     Quais são os desafios para as sociedades que se ordenam cada vez mais no consumo?

 

     O maior desafio é constituir as esferas do diálogo, da busca da solidariedade através da conversa franca, o fortalecimento da democracia real, aquela feita entre as pessoas, tomando decisões que afetam o seu cotidiano, baseadas na argumentação e na contra-argumentação. O desafio é grande, porque são ações dolorosas, que exigem esforço,  abrir mão de interesses particulares e de lucros. Os jovens no curso de Direito são incentivados a buscar um sistema mais justo? Não, na maioria das vezes, eles são incentivados a vencer em suas causas, passar em concursos, ganhar muito dinheiro, a ter todo o prazer que o dinheiro pode comprar (não é pouca coisa). Você tem uma super festa para ir à noite, mas amanhã você terá uma prova importante. O que você faz? A maioria prefere ir à festa e “colar” na prova do dia seguinte. A sociedade nos incentiva a isso, e mudar essa situação vai exigir muito diálogo.

 

 

    Para a Filosofia, o que é ser feliz ou quem é o ser feliz?

 

   Freud em “O mal-estar na civilização” fala da felicidade como “um sentimento oceânico” de plena satisfação, algo plenamente impossível para o pai da psicanálise. Hoje, se quisermos um conceito de felicidade que seja independente das religiões, precisamos optar por uma “felicidade desesperada”, ou seja, uma felicidade que será momentânea, episódica. Não devemos ficar “esperando” por uma felicidade de contos de fada, nem “esperar” que aquele momento feliz vá durar infinitamente (se bem, que na minha memória ele vai durar infinitamente). Assim, devemos nos propor projetos que sejam importantes para nós e que uma vez alcançados nos trarão muita felicidade, ou devemos aproveitar a felicidade de um encontro… É como saborear uma garrafa de vinho, sorvemos cada gole como se fosse o primeiro e o último, ficamos felizes, e ao vermos a garrafa esvaziar-se, devemos ficar felizes por estarmos ali. O ser feliz é aquele que saboreia a vida em todos os seus momentos.

    

 

   Hoje há uma procura crescente de cursos, encontros e palestras de Filosofia por pessoas com formação (ou não) em outras disciplinas. A que você atribui esse interesse?

 

    Como é possível alguém ter tudo, e não ter nada? Quando esse tudo não tem sentido para a pessoa, não preenche o seu vazio existencial, somos seres que têm consciência da própria vida e querem que essa vida faça sentido. O consumismo não é suficiente para suprir esse sentido. As pessoas ficam desorientadas, sentem que falta algo, que alguma coisa está errada. A filosofia contribui para as pessoas refletirem sobre suas ideias, seus valores, sua existência, sua subjetividade e, por isso, há tanto interesse atualmente.

 

 

   Qual a contribuição da Filosofia neste momento de desorientação do homem em relação ao ser?

 

    A filosofia é pensamento reflexivo; é diálogo maiêutico, que “dá a luz” a ideias que estão dentro de nós. E a postura básica em um momento de desorientação é parar e pensar, ou seja, refletir, ou seja, filosofar.

 

 

    Para pessoas interessadas em Filosofia, qual(is) leitura(s) você indica a título de introdução?

 

      Convite à Filosofia: Marilena Chauí; O mundo de Sofia: Joostein Garden; O elogio da loucura: Erasmo de Roterdã; O Banquete: Platão; Cândido: Voltaire; Grande Sertão Veredas: Guimarães Rosa; Genealogia da Moral: Nietzsche; Entre quatro paredes: Sartre; Mente e natureza: Gregory Bateson; Contato: Carl Sagan; Pequeno Tratado das Grandes Virtudes: Andre Comte-Sponville.

 

 

   Uma frase…

 

   A filosofia precisa manter os pés no chão da vida. Outra frase, que gosto muito, é “a filosofia é reaprender a ver o mundo”. A primeira é minha, a segunda é do Maurice Merleau-Ponty.

 

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Entrevista feita por Viviane Campos Moreira postada em Balaio da Vivi: uma prosa com Sérgio Murilo Rodrigues, 2ª parte. http://videbloguinho.spaces.live.com

 

*Mais: Balaio da Vivi: uma prosa com o filósofo Sérgio Murilo Rodrigues (ENTREVISTA: 1ª parte) e Comentário sobre a entrevista com o filósofo Sérgio Murilo Rodrigues

 

One Comment

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  1. Siegfried Fuchs / ago 12 2011 1:24

    Estou entendendo que “simbólico” significa cultura. O mundo da cultura é nosso ambiente além do mundo natural. Ou seja, “simbólico” é linguagem.

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